O JOGO MÚLTIPLO DO CORDEL NA CULTURA BRASILEIRA
Literatura de Cordel. Jogo Múltiplo. Gênero. Ginga. Cultura Popular
O estudo registrado nesta tese parte da constatação de que a literatura de cordel brasileira se constituiu como modalidade cultural de múltipla inserção a partir do diálogo com produtos culturais diversos e a incorporação de textualidades associadas a diferentes contextos de pro- dução. O cordel desliza por diferentes posições dentro do espectro também fortemente hierar- quizado da cultura brasileira construída no âmbito de uma sociedade autoritária e atravessada por desigualdades impostas, entre outros fatores, por um racismo persistente e por uma cultura machista e excludente. Essa múltipla inserção é aqui tratada como jogo múltiplo, a partir da inspiração na ideia de jogo associada por Muniz Sodré à cultura negra no Brasil e na imagem da ginga da Capoeira, para contemplar o esforço lúdico e combativo de cordelistas pertencen- tes a grupos subalternizados, sobretudo cordelistas negrxs e mulheres, com suas múltiplas representações de gênero, raça e sexualidade. Entende-se neste texto que esses cordelistas são responsáveis por construir um acervo poético/narrativo que, acossado por questões complexas impostas pela constante categorização do cordel como cultura popular, permanece ativo e potente como expressão de suas subjetividades desde os momentos iniciais da sedimentação da tradição cordelística, como atestam os folhetos de pelejas protagonizadas por poetas negrxs e mulheres. A ideia de jogo múltiplo sendo uma forma afro-brasileira de ler o cordel, faz com que esta escrita privilegie personagens conceituais cuja trajetória possa ser identificada com movimentos de superação da subalternidade, através do texto do cordel, e com o movimento estético e político do jogo múltiplo, como Inácio da Catingueira, Chica Barrosa, Zé Pretinho do Tucum, Dalinha Catunda, Janete Lainha Coelho, Jarid Arraes, Salete Maria da Silva, Chi- co César e Bule Bule, e desloca a leitura do cordel de uma base ibérica para uma perspectiva afrocentrada. Tal perspectiva, ancorada no movimento do jogo múltiplo, busca entender o cordel como artefato discursivo que informa as potências dessas subjetividades e que, ao mesmo tempo em que acessa a tradição escriptocêntrica, acrescenta a essa tradição o elemento afirmativo e contestatório das forças vitais da cultura da oralidade que são beneficiadas pela disposição lúdica e agonística das culturas negras no Brasil.