CARACTERIZAÇÃO PRÉ-CLÍNICA DAS PROPRIEDADES ANTINOCICEPTIVAS DA AYAHUASCA
ayahuasca; harmina; dor neuropática; analgésico; serotonina; GABA
A dor neuropática afeta uma parcela significativa da população global. O manejo clínico da dor neuropática é desafiador devido à baixa eficácia dos tratamentos atualmente disponíveis, o que motiva a busca por novas opções terapêuticas. Vários estudos demonstram que psicodélicos promovem efeitos analgésicos em diferentes condições dolorosas crônicas. Ayahuasca (AYA) é uma bebida psicodélica usada por muitos grupos religiosos em todo o mundo. O potencial terapêutico da AYA é bem documentado no tratamento de condições psiquiátricas como depressão e drogadição. Entretanto, apesar das evidências anedóticas de que a AYA promove efeitos analgésicos no contexto religioso, esse efeito ainda é pouco estudado. Portanto, este estudo teve como objetivo investigar e caracterizar os efeitos antinociceptivos da AYA. O efeito antinociceptivo de tratamentos orais com AYA foi avaliado em camundongos machos Swiss ou C57BL/6 no teste da formalina, no modelo de inflamação induzido por Adjuvante Completo de Freund (CFA), no teste de retirada de cauda e no modelo de dor neuropática induzido por ligadura parcial do nervo isquiático. A coordenação motora e a locomoção espontânea dos camundongos foram avaliadas pelos testes de rota-rod e campo aberto, respectivamente. Possíveis mecanismos de antinocicepção foram investigados por ensaios de antagonismo farmacológico e avaliando imunoistoquimicamente a expressão de Fos em áreas do encéfalo que modulam a nocicepção. Parâmetros sugestivos de toxicidade sistêmica foram investigados após exposições agudas ou múltiplas à AYA. A caracterização química da AYA foi feita por HPLC e o efeito antinociceptivo do seu componente majoritário, harmina, foi avaliado na neuropatia experimental. AYA (24 - 3000 μL/kg) reduziu de forma dose-dependente os comportamentos análogos à dor induzidos por formalina e a alodinia mecânica induzida por CFA, mas não alterou o edema de pata induzido por CFA ou a latência da retirada de cauda. Durante a neuropatia dolorosa experimental, tratamentos únicos com AYA (24 - 3000 μL/kg) reduziram a alodinia mecânica; tratamentos diários uma ou duas vezes por dia durante 14 dias promoveram antinocicepção consistente e sustentada. O efeito antinociceptivo da AYA (600 μL/kg) foi revertido por bicuculina (antagonista de receptor GABAA; 1 mg/kg) e metisergida (antagonista serotonérgico não seletivo; 5 mg/kg), mas não por naloxona (antagonista opioide não seletivo; 5 mg/kg), faclofen (antagonista de receptor GABAB; 2 mg/kg) e rimonabanto (agonista inverso do receptor CB1, 10 mg/kg), sugerindo o papel dos receptores GABAA e serotonérgicos na antinocicepção induzida pela AYA. AYA aumentou a expressão de Fos na substância cinzenta periaquedutal ventrolateral e no núcleo magno da rafe 1 h após o tratamento, mas não após 6 h ou 14 dias de tratamentos diários. AYA (600 μL/kg) agudamente ou duas vezes ao dia por 14 dias não alterou a função motora, a locomoção espontânea, o peso corporal, a ingestão de ração e água, nem parâmetros hematológicos, bioquímicos e histopatológicos de camundongos. Harmina (3,5 mg/kg, via oral), o principal componente presente na AYA, promoveu antinocicepção consistente durante a neuropatia experimental. Em conjunto, os resultados deste estudo permitem concluir que a AYA promoveu efeitos antinociceptivos consistentes em diferentes modelos de dor em camundongos sem induzir efeitos tóxicos detectáveis. Harmina é pelo menos parcialmente responsável pelas propriedades antinociceptivas da AYA.