RACISMO OBSTÉTRICO E PRODUÇÃO DE INIQUIDADES NA ATENÇÃO AO PARTO: uma etnografia de trajetórias reprodutivas em Salvador/BA
antropologia da saúde; atenção ao parto; racismo obstétrico; trajetórias reprodutivas.
Apesar desses já conhecidos piores dados epidemiológicos no campo obstétrico para mulheres negras, pouco se sabe sobre como essas desigualdades raciais são produzidas efetivamente na prática cotidiana. Diante disso, formulei a seguinte questão de pesquisa: “como as iniquidades raciais são produzidas na trajetória de cuidados obstétricos e como as experiências de mulheres cis negras e brancas são moldadas a partir dessa questão?”. Esse tipo de pergunta exige uma metodologia capaz de capturar um nível de realidade que não pode ser mensurado quantitativamente, tampouco reduzido a entrevistas pontuais. Para isso, desenvolvi uma pesquisa etnográfica. O campo de pesquisa, que durou doze meses, de julho de 2021 a junho de 2022, partiu do ambulatório de pré-natal de uma maternidade pública da cidade de Salvador, Bahia, Brasil e percorreu todo o trajeto que as mulheres fizeram na busca por cuidados obstétricos dentro e fora dos serviços de saúde. Pude identificar que os obstáculos e os acessos foram oferecidos de maneira diferenciada, sendo o componente racial o principal organizador dessa distribuição. Outros marcadores, menos explorados na literatura, também modularam a forma como as mulheres foram vistas e tratadas durante os seus percursos, como a capacidade de agência, o letramento em saúde e a prerrogativa de contatos, frequentemente reduzidos à classe social. Dessa forma, essas imagens contribuíram para a distribuição desigual de algumas dimensões do cuidado, como atenção, respeito, preocupação, empatia, escuta, informação, legitimidade, benefício, acesso, explicação, compreensão e validação, que se traduzem, para as mulheres negras, em uma trajetória marcada por negligências, descuidados, negação de direitos, subjugação, falhas diagnósticas, violências diversas e pior atendimento em geral. Além de moldarem de forma significativa as trajetórias reprodutivas dessas mulheres, essas dimensões se configuram como um grande entrave para a justiça reprodutiva e constituem fatores que possivelmente influenciam o quadro estarrecedor de morte materna entre mulheres negras no país, contribuindo para o aprofundamento do que caracterizo como um processo de genocídio desse grupo populacional no Brasil.