Heterogeneidade e Hegemonia: História e Política no Pensamento Andino
Heterogeneidade, hegemonia, marxismo latino-americano, Mariátegui, Zavaleta Mercado
O núcleo da nossa pesquisa é, falando estritamente, o problema da hegemonia no mundo andino. A abordagem que escolhemos para abordar este problema teórico-político não consiste na análise desta categoria do ponto de vista filológico nem optamos por desenhar um quadro de modulações, usos e potencialidades da noção de hegemonia, mas desenhamos um contorno da política —entendida como equivalente aos diferentes esforços históricos para construir relações de hegemonia — em dois países fortemente marcados pela herança colonial hispânica: Bolívia e Peru. Por essa razão esta pesquisa não só analisa a história e a política das nações supracitadas, mas a faz desenvolvendo, como espinha dorsal do relato, um diálogo crítico com as abordagens históricas e as propostas políticas que emergem da produção intelectual de dois dos mais importantes marxistas latino-americanos do século XX: o peruano José Carlos Mariátegui e o boliviano René Zavaleta Mercado. A questão da hegemonia no mundo andino exigia que se questionasse a atualidade política da herança colonial. De fato, para estabelecer o quadro do problema da hegemonia, foi necessária uma explicação genealógica prévia que explicasse o solo abigarrado sobre o qual qualquer projeto político tinha de ser assentado na região andina. Poderíamos dizer, portanto, que aquilo que René Zavaleta Mercado classificou como «formação social abigarrada» – ou «abigarramiento», de acordo com uma formulação mais difundida em estudos recentes – e que de forma esquemática poderíamos caracterizar como a coexistência desarticulada de diferentes modos de produção, padrões ideológicos, estruturas de dominação e, em suma, a simultaneidade das temporalidades dessincronizadas no mesmo cenário econômico, político e social, marcou decisivamente os diversos projetos políticos na região. Ao mesmo tempo, o abigarramiento — no caso específico do mundo andino— deveria ser compreendido como o resultado dos sucessivos encontros e desencontros entre diferentes grupos humanos: da expansão do Império Inca, seguido pela Conquista e pelo estabelecimento do Vice-reinado do Peru, intercedido pela expansão do capitalismo comercial, pelos processos de independência latino-americanos, a consolidação das oligarquias nacionais, pelo advento do modo de produção capitalista nos enclaves regionais e por tantos outros fatores aos quais esta pesquisa dedica suas páginas. Em suma, o abigarramiento não se refere exclusivamente às tendências centrífugas, mas também às tendências centrípetas, de atração/repulsão aos centros de poder (econômico, político, religioso etc.): as tensões não resolvidas entre as tendências centrífugas e centrípetas ilustram o que está em jogo com a noção de abigarramiento. A encruzilhada é evidente: se o abigarramiento sinaliza a tendência à desarticulação do diferente e, consequentemente, aprofundar a separação entre as partes; a hegemonia, por outro lado, 14 consiste grosso modo na construção de uma unidade entre dirigentes e dirigidos. Assim como o abigarramiento é constituído pela tensão entre as tendências centrífugas e centrípetas que determinam o funcionamento normal das relações de poder, entre a ratificação separatista da diferença e o impulso integracionista representado pela identidade, na hegemonia também é perceptível a tensão que configura a ligação metonímica entre a parte e o todo, conflito inseparável de qualquer construção política feita com aspirações hegemônicas. Essas tensões entre as noções de abigarramiento e hegemonia aparecerão repetidamente ao longo de nossa pesquisa e não apenas a partir de um prisma teórico centrado na descrição dos elementos que compõem o campo semântico dessas categorias, mas também —e fundamentalmente — a partir da análise das ambiguidades históricas e da instabilidade estratégica das apostas políticas de um marxismo andino que encontra no trabalho de Mariátegui e Zavaleta Mercado sua formulação mais brilhante.