GOVERNANDO A NÓS MESMOS?
Governamentalidade, governança e participação social em grandes projetos urbanos: descortinando a ponte Salvador - Itaparica, Ba
participação social; grandes projetos urbanos; ponte Salvador - Itaparica, Bahia.
A participação popular passou a ser fundamental na elaboração e gestão das políticas públicas no Brasil a partir da Constituição Federal de 1988, sendo uma resposta ao anseio democrático brasileiro no pós-ditadura militar. Por sua vez, o Estatuto da Cidade de 2001 veio regulamentar a Carta Magna, ao positivar direitos à cidade e estabelecer processos participativos como requisitos para a elaboração dos Planos Diretores Urbanos, processo designado por vários autores como governança urbana. Entretanto, até o presente momento, a implementação da participação social nas políticas urbanas não foi suficiente para garantir plenamente o acesso ao direito à cidade, na prerrogativa da vontade coletiva. A presente pesquisa busca investigar e explicar esse aparente paradoxo. Para tanto, realiza uma retrospectiva histórica que aborda o encontro da redemocratização brasileira com a propagação do neoliberalismo por organismos internacionais, como o FMI e o Banco Mundial, depois do Consenso de Washington de 1989. Analisa-se o viés neoliberal da gestão urbana corporativa e seu uso dos processos participativos para legitimar intervenções urbanas que privatizam espaços e mercantilizam a cidade de forma seletiva para ganhos imobiliários concentrados e vultosos. Essa forma de gestão ganha novo impulso após a Crise Financeira Internacional de 2008, na qual o Estado brasileiro busca novas formas de aquecer a economia, entre outras medidas, atraindo grandes capitais em intervenções urbanas. Nesse contexto, em 2009 ressurge a proposta da megaponte entre Salvador e a ilha de Itaparica por parte do governo do Estado da Bahia, no rastro dos preparativos para o megaevento mundial realizado no Brasil, a Copa de Futebol 2014. Para dimensionar o empreendimento da ponte Salvador-Itaparica na sua forma de gestão público-privada, a pesquisa retornou às primeiras manifestações públicas envolvendo a concepção da ponte até o oferecimento de estudos técnicos feitos pela iniciativa privada ao governo do Estado pouco antes do seu anúncio público. Enfim, chega-se ao objeto da pesquisa: a revisão e análise dos processos participativos ocorridos nas discussões públicas dos Planos Diretores dos dois municípios que compõem a ilha de Itaparica, especificamente Vera Cruz e Itaparica, notoriamente direcionadas para acomodar as várias mudanças sociais, econômicas e ambientais que o projeto acarretaria na sua execução. A metodologia usada, além da pesquisa documental e histórica, abarca o acompanhamento das reuniões e instâncias participativas ocorridas na ilha, assim como diálogos com alguns participantes locais. Como o projeto foi proposto pelo Estado da Bahia, conflitos e impasses entre moradores e representantes do Estado eram esperados, considerando um ambiente de participação dos cidadãos na discussão de uma proposta pública de grande porte. Para interpretar a dinâmica complexa e multifacetada, alguns conceitos do filósofo Michel Foucault voltados para a governamentalidade foram fundamentais. Assim, esta pesquisa partiu do pressuposto que convocação para a participação popular pode ter sido um instrumento para conduzir a conduta dos cidadãos no aceite do novo megaprojeto proposto, ao invés de levar em conta verdadeiramente suas demandas e preocupações em relação aos planos diretores desses municípios, na perspectiva da governança local de interesses coletivos. Por fim, buscou-se, no aprofundamento teórico-conceitual, compreender os processos de governança urbana na escala micro, e entender na escala macro do urbanismo neoliberal brasileiro — aquele da gestão corporativa na imposição externa de megaprojetos—, por meio da análise da governamentalidade instaurada para uma realização público-privada de uma necessidade coletiva criada.